Assim
como existem pessoas com medo de ir ao médico por receio de doenças, há o
inverso, os peregrinos de consultórios. Tem dores fortes no estomago e a
gastroscopia nada revela; sentem pontadas no coração e o eletrocardiograma é
normal; referem dores de coluna com RX e exames musculares inalterados. E assim
se vão, nunca se conformando com a negatividade dos exames complementares.
Ninguém na literatura descreveu-os melhor que
Moliére(gênio taciturno e satírico do teatro francês) na sua peça “O Doente
Imaginário”. Aliás, a literatura é mais que perfeito no detalhamento de traços
de caráter e desvios de personalidade, superior aos tratados de psiquiatria.
Nenhum livro especializado retratou melhor personalidade histérica como
Flaubert em “Madame Bovary” ou “O jogador” como Dostoiewski.
O “Doente Imaginário” é o retrato da hipocondria.
Tudo é questão de grau. Os leves hipocondríacos demonstram terem de algum dia
ser enfartados. Outros, mais graves têm um medo mais consistente de estarem
prestes a serem cancerosos. Por fim, os verdadeiros hipocondríacos, têm a certeza,
a convicção de estarem sofrendo do coração. Os exames negativos não os
convencem: fazem e repetem dois, três, cinqüenta. Os resultados é que estão equivocados.
Em grande percentual de situações, a
hipocondria se dilui como sintoma comum no meio de várias neuroses, ou como se
fala na terminologia atual, nos distúrbios de ansiedade. Em outras ocasiões,
não. Cristaliza se em praticamente um único sintoma e ai assume identidade
própria: a neurose hipocondríaca dos autores clássicos.
Há ainda a hipocondria que deixa de ser simples
medo ou crença de doença para se transformar em verdadeiro delírio. No primeiro
caso, imaginemos um senhor de 40 anos que, aproveitamento a viagem da esposa,
se aventura numa relação extraconjugal não confiável. Passa dias e dias se
pesando, olhando as fezes, verificando a queda de cabelos, suspeitando está com
AIDS. Após confessar o “pecado” e perdoado alivia a culpa e melhora com ajuda
da psicoterapia, a idéia supervalorizada. Trata-se, aqui de simples reação hipocondríaca.
Agora tomemos exemplo de jovem que, ao fazer
exame de sangue, suspeita estar a agulha contaminada pelo vírus do AIDS. Aproxima-se
de uma namorada, a qual não toca nem beija, por três meses com medo da doença. Realiza
diversos testes, sempre negativos e nunca se convence dos resultados. Pouco a
pouco, o aperto de mão, a toalha manchada de sangue, tudo monopoliza o campo da
imaginação aidética. Chega o momento onde qualquer evento exterior tem relação com
sua enfermidade. Neste caso a hipocondria passa de neurose para delírio e pode
ser sintoma preponderante de futura esquizofrenia.
Quer seja neurótica ou delirante, a
hipocondria é uma angustia deslocada para o próprio corpo. Sim, pois angustia
tende percorrer diversos e misteriosos caminhos: para o medo de elevador, de
altura, de escrever na frente dos outros, para estomago e pressão arterial.
Para ficar mais claro ao leitor poderíamos sintetizar:
a) Há na hipocondria um medo ou uma
crença de ter doença grave;
b) O exame clínico ou laboratorial nada confirma;
c) O paciente se conforma por algum tempo;
d) O paciente volta a ter medo ou crença de estar
doente;
e) O quadro tem de durar mais de seis meses.
Deste há quase um século, os
psiquiatra vêm relacionando a existência da hipocondria ao tipo de
personalidade narcísica. São pessoas com fantasias de grandiosidade e
dificuldade de entender o sentimento dos demais (falta de empatia), magoadas em
excesso com o julgamento dos semelhantes.
E qual a relação entre o narcísico e o hipocondríaco? Como o Narciso, na
lenda grega, apaixonado pela própria imagem, seu corpo é alvo predileto das
angustias não solucionadas. A hipocondria é a dor do desejo insatisfeito de
transformar-se na flor narciso.
No hipocondríaco há um alto envolvimento corporal. É no corpo onde são jogados
os holofotes da autoluminosidade. E nele onde se permitem as atenções e
diferenças dos outros. Com a fraqueza do corpo, o hipocondríaco torna-se especial,
não encontra ressonância no trabalho, na vida social ou na relação com o mundo.
A realidade não satisfaz às suas fantasias e refugia-se no corpo. Este seu receptáculo
de fracassos.
Assoma-se a isso valorização do corpo o mito do narciso nesta época do
consumo. A medicina não só de suprir a dor corporal, como a de viver. Mas o hipocondríaco
não reconhece a sua dor de viver e se centraliza na dor do corpo. A raiva dos
outros que não o reconhecem volta para si.
Nesta época do “Design” das academias, de caminhar com tênis “Nike” e
aparelhos para medir a tensão arterial pelas praias, do caminhar de bicicleta
com o som ao ouvido, narcisicamente referendados pela marca promocional, a
hipocondria só surge quando se esgotam os mecanismos racionais. E nada melhor
para ela: os milhares de toneladas de analgésicos e tranqüilizantes produzidos
pelos laboratórios multinacionais, os quais tanto servem às dores somáticas
quanto às adversidades do existencial.
Maurilton Morais



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